O acumular da experiência clínica, os desafios, obstáculos e conquistas das mulheres que acompanhamos e uma sociedade em constante mudança e provocação estimulam o nosso sentido crítico e convidam-nos a refletir sobre algumas das questões a que nos dedicamos diariamente. Crónicas, entrevistas, conversas e partilhas que nos ajudam a refletir.

Um espaço que seja d’Ela

– Pelas autoras do projeto –

Se antigamente, o principal papel da grande maioria das mulheres era ficar em casa e cuidar das lides domésticas e da família, atualmente isso já não se verifica. As mulheres tornaram-se fundamentais e decisivas também nas diversas áreas profissionais – desde as carreiras de ensino, ao domínio na ciência e na saúde e, mais recentemente, no mundo corporativo e empresarial.

Vários estudos indicam que efetivamente o corpo do homem (e consequentemente a mente) está muito mais estudado do que o da mulher. Há umas décadas atrás, era impensável cientistas explorarem e estudarem o corpo feminino. Isto fez com que se criasse um “buraco negro” naquilo que toca não só ao funcionamento e saúde física, mas também ao funcionamento mental da mesma. Com o papel cada vez mais ativo da mulher na área da ciência e da saúde, foram-se integrando e realizando mais estudos sobre a sua especificidade. O projeto d’ELA nasce dessa necessidade: de estudar mais a fundo a mente feminina, as suas particularidades e a forma como a saúde mental é vivida. Como em tudo o resto, a mente do homem e da mulher são diferentes e, como tal, têm de ser olhados de forma distinta para que a intervenção seja mais adequada e individualizada. Este projeto vem revolucionar a visão da saúde mental no feminino, nomeadamente na idade adulta e pode ser um marco fulcral naquilo que é a intervenção clínica, tendo em conta a mente d’ELA.

Inês Conceição

Gabamo-nos da sorte que é viver num século em que nada mais parece por inventar, em que nada mais nos parece faltar, em que temos acesso a tudo e constituímos o pináculo da evolução humana. Mas este é, também, o século em que as mulheres ainda parecem por descobrir: em que difere o seu funcionamento em relação ao homem? O que continuamos a esperar da mulher enquanto mãe, profissional, esposa e amiga ao mesmo tempo? O que nos contam, as mulheres, sobre o desafio de conjugar todos estes papéis? Por que razão não identificam, os homens, o mesmo peso de responsabilidade e culpa em tudo o que diz respeito à família? Será que homens e mulheres deprimem da mesma maneira? E sentem ansiedade da mesma forma? A intervenção clínica com uns e outros deve seguir os mesmos contornos ou há especificidades a que devemos atender? Como integrar o corpo e a sexualidade na prática clínica? Como atender à alimentação e à imagem? Como acolher e responder às necessidades que aquele olhar nos está a revelar como longe de estarem a ser cuidadas?
Este é o projeto d´ELA, mas não só para ela: é para todos os que se interessem por ir mais além e mais fundo em relação a tudo o que diz respeito à saúde e à psicologia da mulher.

Rosário Carmona e Costa

pandemia, dietas e redes sociais

“Não nota? Agora estou sempre quase 16 horas sem comer. Faz super bem!” – Luísa, 23 anos

Não queria acreditar quando a Luísa (nome fictício) chegou à consulta e me perguntou se eu notava alguma mudança no seu corpo depois do segundo confinamento. Dizia ela que durante os meses mais isolada acabou por começar a seguir nas redes sociais um conjunto de outras raparigas que depressa definiu como modelos e que “aprendeu imenso” acerca da alimentação e de hábitos de vida saudáveis.

Acontece que, ao mesmo tempo que fez este movimento de “aprendizagem”, não conseguiu exercer o devido filtro e adotar uma postura crítica e de discernimento em relação àquilo a que ia sendo exposta.

No último ano assistimos a um crescente número de jovens e jovens adultos com comportamentos de risco online e as perturbações do comportamento alimentar não têm ficado de fora. As redes sociais foram invadidas por dicas e receitas, por profissionais de todas as áreas a dar sugestões para se alcançar o corpo perfeito e, mesmo sem nos apercebermos, todos damos por nós a dar ouvidos a vozes internas de crítica e de convite à restrição ou à culpa/purga quando comemos “coisas que não devíamos”. Aumentou, muitíssimo, a percentagem de pessoas com critérios para a Ortorexia Nervosa, a perturbação que descreve a excessiva obsessão com a alimentação saudável com impacto significativo no ajustamento e adaptação diários.

Se os estudos internacionais já vinham mostrando a relação clara entre a utilização das redes sociais e o impacto na autoestima, nos sintomas de ansiedade e de depressão, é assustador ficar a par dos estudos com a população portuguesa: a primeira utilização de filtros ou editores de imagem é feita, em média, aos 12 anos; 64% dos jovens afirmam que tentam editar/esconder pelo menos uma característica do seu corpo; 4 em cada 10 raparigas prefere ver-se na sua fotografia editada e 30% sente-se menos bonita após ver fotos de celebridades/influencers.

Considerando que a maioria das pessoas utiliza as redes sociais como montra dos seus lados solares (o jantar com a vista mais espetacular, o passeio no carro mais potente, o hotel mais charmoso, o ângulo em que parece mais elegante) estamos a contribuir para uma perceção irrealista da vida, ou melhor dizendo, das vidas! Somando esta ilusão aos fatores de risco que todos carregamos (uma insegurança qualquer acerca de uma parte do nosso corpo, uma insatisfação crescente com o nosso casamento, alguma frustração com o nosso emprego) poderão criar-se as condições necessárias para o desenvolvimento de quadros patológicos de onde poderemos só conseguir sair com ajuda.

Cabe a todos nós promover uma utilização mais honesta e real das redes sociais, cabe a todos nós investir num discurso de verdade e aceitação junto dos nossos jovens (e, por isso, junto de nós mesmos), cabe a todos nós garantir que nos movemos em ambientes protetores em que a diversidade de modelos, de corpos, de realidades, de atitudes os relembram da importância da diferença, da multiplicidade e da aceitação.

Rosário Carmona e Costa

(crónica original escrita em maio de 2021)

autismo

“Estou no Espetro… E agora?” – Perturbação do Espetro do Autismo na Idade Adulta no Feminino

As Perturbações do Espectro do Autismo (PEA) caracterizam-se por um défice persistente na comunicação e interação social bem como por padrões persistentes de comportamento, interesses ou atividades, tendo as suas primeiras manifestações primordialmente durante a infância, mantendo-se durante a vida adulta, não obstante a sintomatologia sofrer alterações ao longo do tempo. O seu surgimento assenta essencialmente em quatro variáveis: genética, fatores ambientais, interação entre os fatores genéticos e o meio, e por fim aspetos relacionados com o desenvolvimento.

A Perturbação do Espetro do Autismo pode ser identificada precocemente durante os primeiros anos de vida da criança. Após os 6 meses podem-se começar a observar alguns sinais de alerta e aos 2 anos de idade já é possível fazer um diagnóstico mais formal. Contudo, quanto mais cedo é feito o diagnóstico, menos estável ele é.

Nos últimos anos o número de diagnósticos de autismo na infância tem vindo a aumentar. Mas será que este aumento significa que agora nascem mais crianças com este diagnóstico? A resposta é não. O mais provável é que os números tenham aumentado efetivamente porque os especialistas conhecem melhor o espetro do que há 40 ou 50 anos atrás.

No entanto, as características e sinais de uma pessoa adulta com esta Perturbação do Neurodesenvolvimento podem ser mais subtis quando detetados na fase da infância ou adolescência. Isto pode-nos fazer pensar no número de diagnósticos que não foram feitos e, consequentemente, no número de pessoas que não obteve uma intervenção adequada.

Não obstante, as características desta perturbação na idade adulta e com especial expressão no sexo feminino, são ainda mais subtis e difíceis de serem detetadas. As raparigas e mulheres têm mais aptidão ou estão mais motivadas para “camuflarem” os seus sintomas e assim o diagnóstico é mais difícil de ser detetado. Posto isto, sugere-se que as raparigas pudessem ter capacidades sociais mais avançadas para esconder as suas características típicas do espetro.

Aquelas que são diagnosticadas na infância tendem a mostrar uma redução dos sintomas ao longo do tempo, mas apenas uma minoria mostra um funcionamento social satisfatório. Por outro lado, algumas raparigas e mulheres, só são diagnosticadas mais tarde, tendo “passado pelos pingos da chuva” durante muitos anos, em parte porque aprenderam estratégias para esconder as dificuldades sociais. As pessoas que foram diagnosticadas mais tarde tendem a desenvolver dificuldades relacionadas com a saúde mental potencialmente relacionadas com o stress a longo prazo na adaptação ao dia-a-dia numa sociedade.

Exemplos de comportamentos de “camuflagem” podem incluir fazer contato ocular durante as conversas, usar frases aprendidas ou piadas pré-preparadas numa conversa, imitar o comportamento social dos outros, imitar expressões faciais ou gestos e aprender e seguir “guiões” sociais. Pode-se também aprender a conscientemente falar mais devagar ou não ficar tão perto da pessoa após receberem o feedback que isto pode ser desconfortável para alguém ou com o objetivo consciente de modelar o seu comportamento ao comportamento de um par sem esta condição de forma a obter uma maior aceitação social.

Posto isto, eis alguns sinais que podem indicar este diagnóstico após os 18 anos: dificuldade em compreender regras sociais subliminares, dificuldade na comunicação e relação com outras pessoas, trabalham melhor sozinhos do que em equipa, dificuldade em sair da rotina e resistência a fazer coisas que não estavam planeadas, interesses restritos e sensibilidade sensorial.

Todas estas especificidades da expressão da Perturbação do Autismo na idade adulta, nomeadamente no sexo feminino, sugerem-nos que não só o “olho clínico” tem de estar ciente das nuances de diagnóstico, mas também das consequentes especificidades da própria intervenção clínica.

Inês Conceição

BURNOUT NO FEMININO

A origem do termo Burnout tem a sua génese na década de 70, quando o psicólogo Herbert Freudenberg funda nos Estados Unidos a primeira rede de clínicas gratuitas de prestação de cuidados à população sem recursos, muitos dos quais com toxicodependentes ou indigentes.

A referida rede de clínicas funcionava entre as 18 e 22 horas, sendo que para a maioria dos seus colaboradores, médicos e enfermeiros, este era um segundo emprego onde, movidos pelo espírito de missão, procuravam dar resposta às necessidades da população sempre com elevados padrões de exigência na prestação de cuidados de saúde.

Rapidamente, por força das excessivas horas de trabalho, e inerente falta de repouso, Freudenberg começou a observar estados de exaustão junto da sua equipa, encontrando um paralelo com as descrições efectuadas pelos utentes toxicodependentes, que descreviam uma sensação de Burnout cognitivo e físico.

Por essa mesma altura a NASA tinha em curso o mediático programa espacial Apollo, com ampla cobertura pelos media e onde o termo Burnout surgia frequentemente como forma de descrever um foguetão que está sem combustível, sendo que a força gravitacional mantém-o em órbitra, apesar da sua utilidade ser praticamente nula.

O mesmo se passa com muitos de nós que temos trabalhos exigentes, stressantes e que não obstante mantermos a nossa rota, o nosso desempenho e funcionamento está francamente comprometido.

Frequentemente confundimos stress com Burnout, no entanto, se o primeiro se caracteriza por estado de energia extrema que nos impele a desempenhar uma ou mais tarefas, já no caso do Burnout, este traduz-se por um estado de falta de energia, de apatia, incapacidade se executar as habituais tarefas e no limite de uma sensação de desvalorização do seu trabalho/função conduzindo a uma sensação de exaustão física, cognitiva e emocional.

Longe vão os dias em que a vida profissional e construir uma carreira era um privilégio dos homens. Hoje dia, havendo tendencialmente uma igualdade de oportunidades, a mesma não se reflecte naquilo que são os factores de risco para quadros de Burnout.

As responsabilidades familiares, ainda maioritariamente assumidas pela mulher, o menor reconhecimento profissional, seja financeiro seja ao nível do desempenho, conjuntamente com as inúmeras, mas “invisíveis” situações de discriminação e assédio vividas no mundo laboral, são factores de riscos acrescido.

No mês em que se comemorou o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, torna-se premente a consciencialização dos factores de risco específicos que nos levam a pronunciar o Burnout no feminino como uma realidade escondida.

Daniel Vaz Sabino

Psicólogo Clínico e Coach no Instituto Belong